Coluna Romeu Duarte: A peste

Seg, 22 de Fevereiro de 2016 09:52



A Moacir Bedê

 

Aos poucos, passou a ter um comportamento muito, muito estranho. Acordava com os passarinhos e passava um bom tempo fitando o céu, à cata de alguma nuvem disposta a contradizer as previsões da Funceme. Ex-amante da chuva, agora a odiava por ela estar na raiz do mal que combatia diuturnamente. O tilintar dos primeiros pingos era para a moça o início de uma faina torturante. Munida de rodo e vassoura, não deixava nem rastro das poças na varanda, na área de serviço e no quintal da humilde casinha no Parque Araxá. “É aí onde eles nascem, esses desgraçados”, dizia colérica de si para si, o olho grelado em qualquer depressão alagada, por menor que fosse. A descoberta da água do degelo da geladeira quase a levou ao suicídio. “É luta sem quartel, vermes!”.

 

Solteira convicta, comemorava intimamente esta sua opção: “Já pensou se estivesse grávida? Era um exame atrás do outro. Pense num aperreio monstro”. Toda vez que tentava pronunciar chikungunya só saía Chico Cunha. Aedes Aegypti, na sua boca, virava um modelo de Jeep. Tinha pânico do dengo da dengue e da zica da zika. Agora só regava as plantas com um nebulizador, cuidando para que as gotículas não se transformassem, nos sulcos das folhas, no berçário dos monstros. Adquiriu telas plásticas e com elas vedou portas e janelas, tornando a morada um forno. Comprou uma raquete elétrica para fritar os canalhas, contabilizando num bloquinho os números do morticínio diário: “Hoje foi só 374, 18 a menos que ontem. Ai, estou vacilando!”.

 

Seu sono escasso era agora entrecortado por pesadelos, nos quais, invariavelmente, o protagonista era o mosquito assassino. Com seu uniforme alvinegro, voava aos milhões em bandos, sugando a seiva das pessoas e nelas injetando a dose letal do seu veneno. Os pobres diabos viravam zumbis que queimavam em febre até a morte, enquanto as infelizes diabas pariam aos borbotões, num choro estridente, bebês de cabeças minúsculas. Quantas vezes, nas últimas semanas, não acordara aos berros, aterrorizada, no escuro quartinho? Paranóica, passou a desconfiar de quem tinha nariz grande: “São agentes infiltrados, são os patifes em forma de seres humanos para nos conhecer melhor e nos destruir”, ruminava, em sua louca teoria da conspiração.

 

Balde, copo, garrafa, bacia, panela com ela era tudo emborcado. “De lascar é esse povo aí do lado, que não está nem vendo. Paciência, faço a minha parte”, resignava-se. Acompanhava com frequência o noticiário sobre a peste e tremia de medo a cada má notícia. “É o fim das eras, adeus humanidade, acabou-se o que era doce”, lamentava-se. Dia desses, já se acostumando com a sua sorte, ouviu palmas no portão lá fora. “Ó de casa, agente da saúde”, gritou o mata-mosquito, um moreno magro, queimado de sol, olhar melado e venta imensa, metido numa roupa cáqui e com uma bolsa a tiracolo. Mesmo sendo para ela um inseto travestido de homem, que entrasse e fizesse seu trabalho. Gostou dos seus modos gentis. “Que calor...Aceita sangue, ops, um suco de acerola?”.

 
Coluna do arquiteto e urbanista, Romeu Duarte publicada originalmente no jornal O Povo do dia 22/02/2016
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