É só o começo

Seg, 16 de Maio de 2016 09:42



bebido, fumado ou cheirado nada emocionante na noite passada, mas mesmo assim sentia-se mal, muito mal. “Dia esquisito este”, pensou, “uma mistura de data azarada, libertação dos escravos e Nossa Senhora de Fátima. Bem que o governo do vampiro golpista poderia ter começado hoje”, curtiu, correndo para o banheiro. Ofegando e suando em bicas após a náusea, lembrou-se de Gastão, o Vomitador, antológico personagem d’O Pasquim, criado por Jaguar. A tensão, as discussões, as contrariedades e os reveses da sorte das últimas semanas deixaram-no doente. Uma garrafinha de água mineral com gás e um copinho de sumo de limão compuseram o seu desjejum. Dura lida o aguardava.

 

No ônibus, olhava os semblantes dos passageiros. Ensimesmados e silenciosos, nem pareciam ter atravessado um turbilhão. “O que vai ser dessa gente agora?”, conjeturava preocupado, mesmo considerando a forte resiliência popular. Na sala de aula da universidade, o que dizer para os alunos? Concentrar-se no frio conteúdo da disciplina ou debater com eles a atroz conjuntura nacional? E se alguém reclamar de sua postura, denunciando-o como doutrinador de consciências? Tempos difíceis estes, em que um docente, no seu ofício, pisa em ovos a todo momento. Notou a classe agitada, num frenético zum-zum. Soube do enfrentamento de dois rolezinhos contrários no principal cruzamento do Benfica no fim da tarde. Enjoado, apagou o quadro.

 

O almoço frugal desceu-lhe com dificuldade, acendendo-lhe perguntas: “Por que não reagimos? Por que engolimos tudo calados? Qual a razão de tanta apatia?”. Teria sido o cansaço de lutar contra um inimigo poderosíssimo, o tal aparelho jurídico, midiático, financeiro e político fazedor de cabeças ocas, ou o desânimo de ir para a rua brigar por um governo pródigo em erros e lideranças carcomidas? No espelho do banheiro encontrou alguém espoliado, cujo voto, assim como os de mais de 55 milhões de companheiros, acabou jogado na latrina. Súbito, céu vespertino, ouviu uma zoada de gritos, bumbos e apitos. “Eita, o pau vai comer”, lamentou-se. Fechou a bolsa, desligou o computador e a luz, trancou o gabinete e saiu da escola, então vazia. O ódio cego fedia no ar.

 

No encontro das duas avenidas, os grupos adversários xingavam-se e provocavam-se. “Não vai ter cuspe” e “fora opressor” eram as palavras de ordem mais proferidas. A polícia, atenta, assistia a tudo. A turma direitista, com mulheres e negros no seu contingente, rezou o Pai-Nosso, cantou o hino do Brasil e exigiu o direito à livre expressão. “Engraçado pedirem isso enquanto defendem o racismo, o machismo e a homofobia e desprezam o pensamento crítico e a democracia”, falou-lhe um colega. De repente, escaramuças, mão de peia, bombas de efeito moral. O velho bairro acadêmico revia cenas de épocas igualmente sombrias. Serenados os ânimos, as turbas dispersaram-se. Na volta para casa, o professor só cuidava do jogo de estreia do Ceará na Série B.

 

Coluna do arquiteto e urbanista, Romeu Duarte, originalmente publicada no jornal O Povo de  16/05/2016.

 

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