coluna Romeu Duarte: Restos de ontem

Seg, 04 de Janeiro de 2016 10:02



Ao povo bom da Vila Romero


Os primeiros raios do sol o acordaram no aterro da Praia de Iracema. Quase soterrado por uma enorme quantidade de lixo orgânico e inorgânico, nu da cintura para cima, o pescoço e as demais juntas untadas com suor e areia, era o próprio retrato do desamparo. Na boca, um gosto que era um misto de cachorro molhado com os corrimãos do Paranjana/Papicu. “Diga aí, colega, feliz ano novo”, disse para o mar, este já ensaiando suas primeiras ressacas januárias. A já intensa luz solar lhe ofendia a vista, que tentava proteger com a mão direita em pala. Doíam-lhe em latejos as costas, a face esquerda e as pernas, sinal de que apanhara de alguém. “Como vim parar aqui, se estava, acho, na Barra do Ceará?”, perguntava-se, desnorteado, o sangue coagulado no supercílio dolorido.

A memória vinha-lhe aos poucos, juntamente com o enjôo dos muitos tragos ingeridos ao longo da boêmia véspera. Inapelável, o vômito irrompeu copioso, o amarelo-bílis trazendo-lhe vagamente à lembrança a cor do vestido daquela tal de que não recordava sequer o rosto quanto mais o nome. Em sua mente, entretanto, uma voz feminina ressoava, insistente: “Raimundo Soldado é Deus e Wesley Safadão é o seu Profeta! Portanto, não tem jeito que dê jeito, onde tem ódio tem amor!”. Terá sido essa a razão dele se encontrar ali? Desistiu de brigar com as parcas recordações e decidiu tomar o rumo do Centro, quem sabe para beber um gelado e revigorante caldo de cana na Leão do Sul. Coçou os bolsos, o lugar mais limpo, os documentos idos. “E na firma, amanhã, como vai ser, bebê?”.

No curso do seu caminho, a cidade dormia o sono dos que não têm hora para levantar. Despertos somente os infalíveis atletas matinais e vendedores de lanche. Descamisado, só de calça branca e sem sapatos, era ver um personagem desesperado saído de um quadro de Descartes Gadelha, em franco contraste com tanta natureza e saúde. Seus passos no vazio humano dos passeios eram impressos sobre montes de detritos. Em chegando à Praça do Ferreira, vislumbrou uma árvore pejada de colchonetes dos moradores de rua ao lado da que é tradicionalmente armada naquele logradouro para os festejos natalinos. “Esta sim é a verdadeira Árvore de Natal de Fortaleza”,
falou ao raquítico nim insolitamente decorado, sob cuja sombra alguns miseráveis avidamente merendavam.

Tentou acordar um companheiro de infortúnio para que este tomasse o desjejum oferecido por alguns abnegados, já àquela hora preocupados com o destino dos desvalidos desta Taba de Alencar. “Sopa?! De novo?! Só tem isso no cardápio de vocês?! Não aguento mais! Sendo assim, prefiro continuar dormindo!”, ralhou o esmoler cordon-bleu, certamente saudoso da gastronomia parisiense. Aborrecido com a ingratidão do chapa e constatando a velha lanchonete do seu agrado fechada, resolveu pegar o Beco do Pocinho em procura do Pajeú. O mantra brega continuava troando nos seus ouvidos, agora amplificado num eco. O dia inicial de 2016, já pelo meio, ouviu-lhe ganir “Eu e esse riacho, pense em dois bichos sem sorte” e assistiu-lhe em seu banho inaugural do novo ano.


coluna do arquiteto e urbanista, Romeu Duarte publicada originalmente no jornal O POVO do dia 04/01/20116
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