Coluna Romeu Duarte: Mundo Cão

Seg, 02 de Maio de 2016 10:40



A Henrique Jorge Silveira

 

Disse T. S. Eliot em A Terra Desolada, na magistral tradução de Ivan Junqueira, que “abril é o mais cruel dos meses”, por germinar lilases da terra morta, misturar memória e desejo e avivar agônicas raízes com a chuva da primavera. Oh, meu caro, hipócrita, semelhante, irmão leitor, “o cadáver que plantaste ano passado em teu jardim já começou a brotar? Dará flores este ano?”. Às vezes, só a poesia é que nos faz aguentar o cotidiano, cheio de tanta canalhice e desgraça. A discórdia parece ser a tônica dos relacionamentos humanos no planeta e nesta pátria brasileira. Nunca dantes na história deste país se arengou tanto. Grupos que pareciam coesos rompem por qualquer besteira e iniciam um pugilato em praça pública. Brigar é a nova moda mundial.

 

Até nos quadrinhos, onde sempre reinou uma clara divisão entre o bem e o mal, os paladinos da justiça começam a enxergar suas diferenças e aí, como diria o saudoso Jurandir Mitoso, é retalho de disfarce e caco de armadura para tudo que é lado. A bagaceira começou com o entrevero entre o Batman e o Super-Homem quando este, um doidinho que veste a cueca por cima da calça e um mero fantoche nos dedos do governo, foi tirar satisfação com o Cavaleiro das Trevas sobre os métodos, digamos, pouco ortodoxos que o morcegão emprega contra os criminosos de Gotham City. A coisa degringolou e agora a mão de peia da hora é entre o Homem de Ferro e o Capitão América, cada um com seu time de vingadores, separados por questões políticas. É mole, amigo?

 

Na vida real, o ambiente é irrespirável. Além da cisão que há tempos aparta coxinhas e petralhas, pipocam aqui e ali cizânias internas aos bandos, gerando situações inusitadas. “Tudo bem, fui às concentrações na Praça Portugal, bati muita panela na minha varanda, sou a favor do impeachment da Dilma, mas participar da carreata do Bolsonaro é dose para leão!”, disse-me um conhecido, voz baixa, quase num sussurro. “Meu chapa, kit que é kit vem completo. Além do facistão, seu apoio ao golpe deu força ao Temer, ao Cunha e ao resto da quadrilha. O que faz pena é você ter se esforçado tanto para livrar o Brasil da corrupção e acabar entregando-o a essas figuras”, respondi-lhe, com uma ponta de maldade. Engolindo em seco, saiu para comprar uma camisa da CBF.

 

Ah, que trinta dias difíceis foram estes últimos. Quanto ódio, quanta desfaçatez, quanta falsidade. O pior é quando a lembrança incendeia o presente. Por falta de um interessado ou por ser tido como alguém que gosta de velharia, recebi, como fiel depositário, um conjunto de fotografias das festas de Natal que fazíamos no inesquecível Bar do Aírton. São imagens de um tempo bom e fraterno, algumas delas contando já mais de três décadas. Cabeludos hoje calvos, esguios hoje barrigudos, lisos hoje ricos, gente que se reunia pelo simples prazer de estar junto. Atualmente, talvez não seja possível juntar essa turma toda à volta da mesma mesa, vez que é indigesto um banquete de discrepância regada a bílis. Momentos melhores virão, mas é penosa a espera.

 

Coluna do Arquiteto e Urbanista, Romeu Duarte,  originalmente publicada no jornal  O Povo de 02.05.2016

 

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