Barcelona aproveita destruição resultante de protestos para refazer ruas de outro modo

Seg, 02 de Dezembro de 2019 14:00



Barcelona segue avançando na ideia de ser uma cidade mais amigável aos pedestres. E os protestos pela independência da Catalunha têm ajudado indiretamente nisso. 

"Vamos aproveitar [a reconstrução] para fazer diferente, de modo que ali não passem carros", diz Janet Sanz, vice-prefeita da cidade e secretária de urbanismo, mobilidade e ecologia.

Janet Sanz, vice-prefeita de Barcelona, filiada ao partido Barcelona en Comú - Divulgação

A prefeitura tem criado "super ilhas": blocos de até nove quarteirões com ruas fechadas aos carros, com bancos, mesas e estruturas no asfalto, para aproveitar a cidade a pé.

Novos bloqueios aos carros estão a caminho: em janeiro, entra em vigor um veto a automóveis com mais de 20 anos, e há planos de reduzir a velocidade máxima para 30 km/h em 90% das ruas.

Formada em direito e em administração, Janet, 35, conversou com a Folha durante uma visita a São Paulo.

"Temos muito trabalho a fazer em Barcelona, mas aqui há muito mais. Não saberia por onde começar", disse.

Como tem sido o trabalho para recuperar Barcelona depois dos protestos?
Está sendo rápido. Foram queimados mais de mil contêineres [de lixo] em uma semana. Até o fim do ano, estarão todos repostos. Eu estou aproveitando: como desmontaram uma rua, tiraram os tachões, eu disse: não voltem a recolocá-los. Vamos aproveitar para fazer diferente, de modo que ali não passem carros. Estamos implantando um modelo novo de cidade, verde e sustentável, e aproveitamos qualquer oportunidade como essa.

Como anda o modelo das "super ilhas"?
Há cinco já criadas, e vamos fazer todas as possíveis. Meu objetivo é que Barcelona inteira seja uma super ilha, um espaço para que as pessoas brinquem e vivam nas ruas. Somos uma cidade mediterrânea, faz muito sol, e as pessoas vão para a rua. Isso tem que ser facilitado.

Policiais e manifestantes entra em confronto do lado de fora do quartel da polícia espanhola em Barcelona. Lluis Gene/AFP/LLUIS GENE

Como é feita a implantação?
De forma flexível. Há um processo participativo bem intenso com os vizinhos, que dura um ano. Eles dizem: quero algo para crianças aqui, um banco porque quando venho do mercado, estou cansada e quero sentar. Ali se definem os usos. Pintamos [as novas sinalizações] no solo, de modo provisório, e as pessoas começam a usar. E vamos vendo o que é preciso mudar, até definir o que será feito de modo permanente.

Que outras medidas estão nos planos?
Em 1º de janeiro, será proibido que carros a gasolina emplacados a partir de 2000, e os a diesel de antes de 2006, entrem na cidade. Isso nos permitirá reduzir a circulação de 125 mil carros de um golpe só.

A intenção é ir ampliando essa restrição. Será a primeira cidade da Espanha a criar uma zona de baixas emissões que cobre toda a cidade. Madri fez apenas na área central.

Também queremos que 90% das ruas tenham limite de 30 km/h. O tema da segurança viária é central. Me explicaram que aqui em São Paulo morrem quase mil pessoas ao ano no trânsito [foram 884 na cidade em 2018]. É inaceitável. Nós temos 30 ao ano, e me parece uma barbaridade.

Faz pouco tempo, um menino morreu atropelado perto de uma escola. Foi um drama na cidade. Todos estão conscientes de que isso não pode se repetir. E a velocidade é chave.

Haverá contrapartidas a esse bloqueio?
Sim, a Tarjeta Verde. Se você tem um carro velho e abrir mão dele, te damos um cartão que dá direito a usar todo o transporte público gratuitamente. Mas é preciso ter o compromisso de não comprar outro veículo por três anos. Já levamos 6.000 pessoas a essa mudança. 

Estamos também potencializando o modelo de compartilhamento, e criando um cartão para que possa pagar por todos esses serviços, chamado T-Mobilidad. É o modelo Maas (Mobilidade como Serviço), mas com liderança pública. Criamos essa plataforma e falamos com os operadores públicos e privados para aderirem a ela. Os pagamentos serão feitos conforme o uso. E haverá descontos conforme você usar mais. A previsão é que seja lançada em 2021. 

Como a prefeitura pode estimular esse compartilhamento?
Fizemos uma regulação para as motos: todas têm que ser elétricas, reservamos espaços nas ruas e elas pagarão um valor anual para circular e estacionar. Há um limite de 7.000 motos, de cinco empresas. Fizemos com motos porque não queremos mais carros. 

E as patinetes?
Fizemos uma regulação muito restritiva, e as companhias de compartilhamento estão proibidas. Você pode ter uma patinete e usá-la, mas não vai encontrá-las jogados pelas ruas. Temos coisas demais no espaço público, e não dá para tudo. 

Empresas locadoras de patinetes elétricos terão de se adequar às novas exigências da prefeitura. Folhapress/Rubens Cavallari

​E o Uber?
É uma plataforma internacional, como Airbnb. Elas chegam, fazem que tanto faz para como funcionam as coisas, e começam a operar. Aqui dissemos: "Não, temos regras, precisamos que vocês se adaptem e vamos pouco a pouco abrindo esse mercado". Elas disseram: "Não, vamos fazer o que quisermos".

O que aconteceu? Houve um conflito enorme com os táxis, que bloquearam Barcelona por três meses, e nos colocamos ao lado dos táxis. Fizemos então uma regulação de que o serviço de Uber não pode ser pedido de imediato. Se quer usá-lo, deve reservar uma hora antes.

Está funcionando?
Sim. Sempre há trapaças, mas temos muita polícia. Colocamos placas diferentes neles, de modo a saber quando é um carro de Uber, e fazemos inspeções. 

Estar em uma região mais autônoma, como a Catalunha, ajuda a fazer mudanças radicais?
Os municípios são as primeiras portas de qualquer vizinho, mas somos a administração mais precária. Não temos recursos e capacidades. Barcelona, como Madri, possui uma Carta municipal, que dá mais poder que outras cidades.

A Generalitat [governo da Catalunha] não paga praticamente nada e descumpre seus compromissos constantemente.

Nosso objetivo é que as cidades tenham mais recursos e poder de decisão, Como no tema do Airbnb e plataformas internacionais, temos montado uma espécie de força-tarefa, ao lado de Amsterdã, Paris, Copenhague, Londres e Nova York. Estamos nos unindo porque temos os mesmos problemas e espaços que precisam ser regenerados urgentemente.

Vista do Minhocão, no centro de São Paulo. Adriano Vizoni/Folhapress/Adriano Vizoni

Como avalia São Paulo, em termos urbanísticos?
A cidade me pareceu incrível. Tem um capital social e cultural superpotente. Mas senti um horror com a estrutura viária. A sensação é que o trabalho a fazer aqui é enorme, não saberia por onde começar.

Vi o Minhocão, a avenida Paulista, a ilha do Bororé. As estruturas viárias são uma barbaridade, que não privilegiam as pessoas, contaminam o entorno e geram zonas urbanas degradadas. Há que se fazer mais pelo transporte público e gerar segurança para ir de bicicleta. As ciclovias são escassas. 

A senhora defende um "urbanismo feminista". Como o define?
Quem faz as cidades? Homem, branco, de meia-idade, que tem trabalho e é de classe média. O que estamos fazendo é reverter isso. Primeiro porque eu e a prefeita Ada Colau somos mulheres, e o que colocamos no centro? A vida cotidiana.

O espaço público tem que ser a expressão das crianças, das pessoas mais velhas, das mulheres, dos diferentes itinerários de vida. Nem todo mundo vai o tempo todo para o trabalho. O trabalho reprodutivo também tem que ser visível, não só o produtivo. É preciso ter espaços para criar comunidade, sentar e falar, dividir com os vizinhos. Para mim, feminismo é incorporar todos no planejamento urbano.


Janet Sanz
Formada em ciência política, administração e direito pela Universitat Pompeu Fabra (Espanha). É conselheira (equivalente a vereadora) de Barcelona desde 2011, e também vice-prefeita e secretária de ecologia, mobilidade e urbanismo. Filiada ao partido Barcelona En Comú. 

Fonte: Folha de S. Paulo

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